A tese de que o Excecionalismo Ártico, que conota a aparente imunidade da região a perturbações políticas, iria pautar o sistema internacional no pós Guerra Fria viu o seu cessar quando, em 2007, a Federação Russa decidiu implantar uma bandeira de titânio no fundo do Oceano Ártico. Desde o sucedido, o alarme fez-se soar no Ocidente, com uma atuação russa entre a cooperação e competição aliado a um acelerar do degelo e do pergelissolo num ritmo sem precedentes. Mas, a questão permanece... Como é que uma área de tensão política e militar residual e suposta zona de cooperação e paz escala para uma das zonas mundiais mais vulneráveis atualmente?!
Primeiramente, a região ártica tem vindo a consolidar a sua ação geopolítica e estratégica ao longo das décadas, estando intimamente ligada aos interesses dos atores que nela atuam – leia-se o Canadá, Finlândia, Dinamarca (Gronelândia), Noruega (Svalbard), Islândia, Suécia, Estados Unidos da América e a Rússia -, ainda que patenteando um dualismo vígil entre a ação e reação. Posteriormente, como cenário geopolítico, a análise deste círculo polar não é recente, porém assume hodiernamente uma atenção especializada em favor das alterações climáticas, especialmente sentidas nesta zona onde se estima que as mudanças sejam quatro vezes superiores à média do planeta.
Neste sentido, a partir das referências explanadas consegue-se perceber o porquê do certame na região e quais os stakeholders neste xadrez geopolítico. Se por um lado o desaparecimento progressivo do permafrost que cobre o Ártico representa um dos maiores reptos a nível global com imperativo de combate, por outro, o degelo permitiu desvendar neste círculo uma miríade de condições favoráveis com um valor estratégico incomensurável para os atores internacionais. De acordo com o U.S. Geological National Survey prevê-se que cerca de 30% das jazigas mundiais de gás natural e 13% das de petróleo e urânio aqui se encontrem, para além da possibilidade de exploração de novas rotas marítimas transárticas, como a Northwest Passage ao longo da costa do Canadá e a Northern Passage na costa russa.
Rotas Marítimas no Ártico (Fonte: Instituto Universitário Militar)
A verdade é que o Ártico se tornou uma área pivot, na qual mais que os Estados costeiros, a presença de atores geograficamente distantes – como a China, França, Reino Unido e Índia – é conspícua.
Irrefutavelmente, nesta luta por recursos, principalmente energéticos, é concreto o vanguardismo russo e a sua querela com os países do Ocidente. Para o Kremlin existe no Ártico uma inequívoca expressão defensiva, dada a militarização da região face à presença de oito “olhos atlânticos”, mas também desenvolvimentista. Ademais, importa considerar que a Federação Russa é o principal beneficiado desta zona, uma vez que os maiores depósitos de hidrocarbonetos, da qual a Rússia é dependente, se encontram na sua parte do território. No entanto, a estratégia russa suplanta o aspeto económico, sendo predominantemente político e militar. De entre os estados costeiros, Moscovo é o que mais tem investido nas últimas décadas em bases e pontos navais e na presença de tropas na região, devendo-se, em parte, ao objetivo em ter controlo de áreas estratégicas, como a travessia marítima nórdica que concede acesso às ilhas Svalbard, e a intenção de se afirmar como superpotência mundial.
Militarização russa no Ártico (Fonte: American Security Project)
Evidentemente que a cada avanço russo a inquietação do Ocidente cresce, principalmente porque a estratégia militar da NATO no pós Guerra Fria se revelou como superficial e conservadora. Não obstante, emerge também na UE a necessidade premente de intervenção, numa região não regulamentada e desprovida de mecanismos de cooperação multilateral. Pelo que, nesta política de orientação para o extremo norte deve ser priorizado não somente um patrocínio científico – tanto verde como energético – e uma proteção social, mas sobretudo um maior envolvimento político na região, onde a UE não sendo um corpo desconhecido no círculo deve exigir o estatuto de observador no Conselho do Ártico, em linha de prática que é observada na China e nos EUA.
Ainda que o conflito na região não esteja iminente, existe no Ocidente uma postura circunspecta, principalmente desde 2014 após a invasão da Crimeia, e posteriormente com a invasão da Ucrânia em 2022, enquanto a Rússia estabelece uma balança de forças com a Ásia-Pacífico, cuja possível cooperação militar, sobretudo com Pequim, pode constituir uma ameaça aos interesses europeus e transatlânticos.
Atendendo à profunda desconfiança que a Federação Russa demonstra, a NATO como aliança detentora de presença ativa na região, deve unir-se com a UE e quebrar a inércia, garantindo uma balança de poderes estável e pacífica, promotora da cooperação regional e multilateral, sob risco deste urso polar, com maior capacidade tecnológica, poder convulsionar a configuração geopolítica do Ártico.
Referências adicionais:
Figueiredo, A. P. (2023) O despertar do Ártico no panorama geopolítico: A militarização russa como ameaça à estabilidade regional. [Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Relações Internacionais] Universidade da Beira Interior. https://ubibliorum.ubi.pt/handle/10400.6/14246
Pereira, R. (2014) A Geopolítica do Árctico e a Estratégia de Segurança Energética da União Europeia. Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Estratégia] Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. https://www.repository.utl.pt/handle/10400.5/8021
Comments