Fonte: Diário Economico
O Conflito em Cabo Delgado apresenta causas complexas, não sendo uma guerra contra os grupos terroristas presentes na província per se, mas apresentando interesses e fatores complexos que nem sempre são aparentes numa primeira análise.
A província de Cabo Delgado – ou, como é apelidada, o Cabo Esquecido – é uma das regiões mais pobres e politicamente marginalizadas de Moçambique, com falta de oportunidades de emprego, um nível de vida da população estagnado e sem perspetivas futuras, que contrasta com a ostentação de riqueza por parte dos membros das elites políticas e económicas. Ademais, esta região surge enquanto ponto chave tanto a nível das suas riquezas minerais – dos quais se incluem a mineração de rubis e a extração de gás natural –, como de ponto de tráfico de drogas (contribuindo com milhões de dólares anuais para a economia moçambicana e comprando cumplicidades de forma transversal na pirâmide de poder existente) para mercados como a África do Sul e a Europa, e enquanto um dos pontos de entrada no Canal de Moçambique.
Assim, não é possível identificar um só fator que desse origem a este conflito, mas é indubitavelmente a sua relevância tanto a nível geopolítico como geoeconómico e de investimentos estrangeiros que lhe deram visibilidade na cena internacional.
Desde o início do conflito em 2017, devido à persistência de ações violentas perpetradas pelo grupo armado Ansar-Al-Sunaa, que este conflito representa um risco não somente a nível interno como a nível externo, de efeito de proliferação para os países vizinhos. É, portanto, natural o envolvimento de atores da comunidade internacional no apoio direto a Cabo Delgado, desde Estados vizinhos como o Ruanda e a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), a países Ocidentais como Portugal, EUA, França ou a própria União Europeia, e a países como a Rússia e a China, que possuem interesses económicos e geopolíticos em Moçambique.
De forma mais ou menos direta, todos os países mencionados têm ação sobre o conflito em Cabo Delgado, sendo esta da mais variada natureza, desde a realização de acordos de cooperação à doação de equipamento militar e produtos alimentares. Não obstante, o Estado moçambicano não permite nem aceita qualquer oferta de ajuda a nível do seu apoio militar, valendo-se do princípio do Direito Internacional de “não ingerência”, alegando questões de soberania nacional.
Face a esta postura por parte do Estado moçambicano que não permite a interferência de apoio militar direto de outras potências, ao mesmo tempo que também não demonstra capacidade – ou vontade de – resolver o conflito, emergem grupos mercenários e outras forças internacionais que não estão ligadas ao Ocidente, desde logo pela desconfiança existente face à intervenção do mesmo. São o caso, a título de exemplo: do Grupo Wagner, o grupo russo mercenário que atuou diretamente em Moçambique desde setembro de 2019 a novembro de 2019; do grupo Dyck Advisory Group, empresa do Zimbabué, cujo contrato vigorou até abril de 2021; e do consórcio Paramount e Burnham Global da África do Sul e do Dubai, cujo contrato vigorou até novembro de 2021. Todos estes grupos atuaram diretamente no terreno.
Pelo contrário, a atuação no terreno de Estados ocidentais continuou a ser vedada por parte do Estado moçambicano, se quisermos considerar o caso da missão de treino da União Europeia em Moçambique (EUTM Mozambique). Esta consiste numa missão de treino e suporte às forças armadas moçambicanas com o objetivo último de proteger a população civil e restaurar a segurança na província de Cabo Delgado. Surge, então, enquanto um instrumento que deve de ser complementado com outros como a prevenção do conflito, o diálogo e a assistência humanitária. Numa vertente mais indireta, a União Europeia é capacitada de atuação através do fornecimento de instrumentos para a resolução do conflito e não da atuação direta. O mesmo se sucede com outros Estados como é o caso de França, que atua somente através do grupo empresarial público “TotalEnergies”.
Este conflito, que persiste não contra o governo ou contra a sua má-governação, mas sim contra o aparelho do Estado e a sua população, urge uma resposta concreta e consistente, assente na cooperação internacional a nível transversal. O vazio político por parte do Ocidente que continua a existir neste cenário é notoriamente ocupado por forças que nem sempre procuram a resolução do mesmo, com possíveis consequências não só a nível interno como também regional e internacional.
Referências adicionais:
Cardoso, F. J. (05 de abril de 2021). Cabo Delgado: insurgentes, jihadistas ou terroristas? Obtido em março de 2024, de Observador: https://observador.pt/especiais/cabo-delgado-insurgentes-jihadistas-ou-terroristas/#title-7
Stanyard, J., Nelson, A., Arde, G., & Rademeyer , J. (2022). Insurgency, Ilicit Markets and Corruption - The Cabo Delgado Conflict and its regional implications. Switzerland: Hanns Seidel Foundation. https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2022/02/GITOC-ESAObs-Insurgency-illicit-markets-and-corruption-The-Cabo-Delgado-conflict-and-its-regional-implications.pdf
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